Morrer, a maior certeza de quem vive. Viver, um dos maiores desejos de quem sabe que vai morrer.
Nossa espécie humano sapiens inventou muita coisa e vai continuar inventando. Para poder inventar muito, destruiu bem mais. Só não conseguimos inventar o antídoto da morte. Tecnicamente falando, todos nós morreremos, mas conseguimos criar religiões que nos transportam para uma passagem de vida para a eternidade. Sou um cidadão que precisa de religião, e como Freud um dia já disse, há pessoas que necessitam de um vínculo com um Ser Superior, o que ele chamou de “sentimento oceânico”. Não consigo conceber a minha vida sem esta necessidade de ter um Ser Superior me guiando. Escolhi esta vivência na prática da religião Católica e muitos outros escolheram de outra forma. Na Igreja Católica o dia de finados é antecedido pelo “dia de todos os santos”, mulheres e homens que experimentaram e deixaram a marca no planeta por terem vivido o amor ao próximo sem distinção.
Sei que para muitas pessoas o dia de finados é um pouco depressivo, pois nos faz lembrar de entes queridos que já se foram. Para isso existem práticas culturais que ajudam a elaborar a perda, como: Visitas a cemitérios; participar de uma missa aos mortos; acender uma vela por quem já partiu. Estas práticas culturais os brasileiros praticam com muita força, por isso os cemitérios sempre ficam cheios. Mas ir ao cemitério pode ser um forte entrave, pois faz-nos deparar com a realidade como ela é. Naqueles mausoléus, chiques ou simples, só restam ossos. Só nos restam lembranças, e lembramos de quem temos saudade e saudade é um sentimento que brota no coração de quem amou e ama. Reviver a história, cultuar a lembrança cuidando do túmulo ou simplesmente só visitando um cemitério, é viajarmos noutrora, é regredirmos emocionalmente, com risco de ficarmos preso no passado. Surge então melancolias, depressão, tristeza.
Lembrar de coisas boas, momentos afetivos
O importante é lembrar do que a pessoa deixou de bom em vida. O que não sai da lembrança de um ente querido morto e que trás sentimentos agradáveis. São lembranças de momentos afetivos, onde o vínculo de amor faz aquecer a alma. Este legado da memória do ser humano, principalmente da memória afetiva/emocional, é um valor que nenhuma tecnologia vai conseguir apagar do “DNA cultural” da humanidade. Lógico que o “não vai conseguir apagar” é minha esperança. Sabemos que a tecnologia pode sim tirar esse legado humano de encontro afetivo. E a cada ano que passa com o crescimento da tecnologia, principalmente do smartphone e computador, vemos florescer muitos humanos mortos/vivos, pessoas que estão se fechando em si mesmas.
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As visitas aos cemitérios, como supracitado, pode despertar sentimentos de tristeza, melancolia, regressão e outros, mas em contrapartida é importante manter a cultura do cemitério de forma sadia para que possamos preservar este legado de lembranças de vínculo. A geração mais jovem tem se afastado deste ritual do dia de finados, por isso se faz necessário que que os pais façam um passeio pelo cemitério com os filhos ainda crianças e jovens para aprenderem a cultuar os mortos nos seus túmulos.
A simbologia da caveira é uma marca histórica ao longo da humanidade. Hoje ela é muito difundida em designs do meio juvenil. Alguns se apavoram com a caveira por acharem que está associada à coisas do mal. Ao contrário a caveira, principalmente o crânio, é um legado histórico.
Como ficamos felizes ao sabermos que o crânio da Luzia a mulher mais antiga descoberta no Brasil (seu fóssil) foi achado nos escombros do incêndio no Museu Nacional no Rio de Janeiro. É sempre bom lembrar que o estágio de maior equilíbrio humano é o estágio caveira. Do jeito que o sujeito é enterrado, ele fica ali parado, a face e o crânio trazem um equilíbrio fantástico da arcada dentaria, que sempre está sorrindo. Assim, o morrer para muitos traz o legado de eternidade, do paraíso. Para outros poucos, que não praticam religião e são ateus, pelo menos há o culto aos restos mortais – caveira, esqueleto, crânio, dentes – uma junção de equilíbrio permanente e felicidade eterna. Olha quanta coisa podemos pensar no cemitério.
O morrer traz ensinamentos para a vida
Lembro quando assisti a uma conferência de Herbert de Sousa (Betinho) que estava recém-chegado do exílio na Europa, após a ditadura militar em 1986, no teatro Tuca PUC em São Paulo, na região de Perdizes. Quando ele falava que aprendeu a gostar e escolheu sua profissão de sociólogo na oficina de seu pai quando ele ainda era criança. Seu pai trabalhava na confecção de cachões, dos ricos normalmente amadeirados e com detalhes dourados, dos de classe média só amadeirados e com bronze e os populares, que eram os cachões que a prefeitura pagava para os pobres da cidade no Rio de Janeiro, estes eram de papelão prensado. “Ali eu já comecei a entender a sociologia”, concluía Betinho (in memória).
Também posso dizer que no cemitério, quando criança, aprendi já a profissão de Psicólogo. Meu pai Manoel, marmorista, ganhava um bom dinheiro fazendo túmulos de mármore no cemitério de São José do Rio Pardo – SP, eu ia ajudar. Meu pai me pagava por túmulos que eu e meu irmão Edson limpávamos. Nessa época já comecei a deparar-me com as alterações comportamentais dos clientes do meu pai. Clientes exagerados, ricos e hilariantes, gastavam fábulas de dinheiro para fazer o túmulo. Como o caso de meu pai ter arquitetado um túmulo de pedra cor de rosa que era o formato de uma viola. O senhor enterrado ali era um seresteiro famoso, filho de uma família muito rica e esbanjadora na cidade. Outro túmulo que vi meu pai construir foi o de uma muralha toda fechada com uma porta imensa de aço e a imagem de mais de dois metros de Jesus batendo a porta. Meu pai disse que aquele túmulo era de um coronel muito rico que havia torturado muitas pessoas e a família reproduziu no túmulo dele a simbologia do quanto Jesus Cristo teria dificuldade de entrar em sua morada. Mas também tinha os túmulos lindos, com frases de esperança na salvação, lembro-me de um que estava escrito “aqui jaz um homem generoso, que fez o bem para a humanidade e ajudou muitas famílias pobres a sobreviver e prosperar” era o túmulo de um pediatra antigo na região, que atendia depois de aposentado nos bairros periféricos de onde morava.
Na morte vemos a esperança da vida eterna
Enfim, finados sem cemitério é como roseira sem flor. A boa roseira florida, é por si só espinhenta. Ao colhermos a rosa que ela nos oferece, dá trabalho, espeta e às vezes faz sangrar. Mas quando a amada recebe em mãos as rosas desta roseira, fica toda encantada de tamanha beleza e perfume. Assim nos lembra finados que nossa morte é certa, por isso assusta. Mas na morte vemos a esperança da vida eterna, onde seremos julgados não pelos nossos erros e pecados, mas pela nossa capacidade de ter amado o próximo. Para quem não crê na vida eterna, resta deixar pelo menos um legado existencial na terra, sua obra, suas ações, sua marca. Para lembrar um dos princípios de Augusto Comte, que o homem só é eterno quando sua obra permanece. Algumas pessoas vão deixar obras faraônicas, como fizeram os faraós, outras vão deixar obras de amor, como deixou São Francisco de Assis. Eu quero deixar cravado na minha existência o meu pensamento, como deixou Freud, Platão, Winnicott, etc.
No livro “Sapiens – uma breve história da humanidade” (2016) do antropólogo Yuval Harari, em quase 500 páginas tenta fazer uma breve história da humanidade. E no final de seu lindo livro deixa no ar um questionamento. A humanidade ainda precisa mais do que perguntar o que vai deixar no amanhã, precisa sim buscar a resposta do que deseja para o amanhã.
A nós que ainda somos seres viventes em carne, osso e psique, o importante é escolher um desejo e desejar trilhar esse desejo, que pode ser os sonhos. E se a morte assim nos pegar que pelo menos nos leve em pleno gozo de desejar.
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